29 junho 2008

a voz do morro

Nacionalmente, Recife é conhecida como terra do frevo, maracatu, movimento mangue, etc. Mas a diversidade cultural da cidade vai muito mais além do que se pode imaginar E eis que Recife, celeiro incansável de novidades musicais, surge com mais uma das suas. Porém, uma novidade das mais insólitas e curiosas: João do Morro.

João do Morro é morador do Morro da Conceição (Casa Amarela), comunidade da Zona Norte do Recife, cuja população possui menor poder aquisitivo. E lá, como qualquer comunidade mais pobre dessa cidade, se convive de forma harmoniosa com manifestações culturais mais tradicionais como o já citado maracatu, a capoeira, o candomblé, como também expressões mais “popularescas”, como o pagode, o funk e o brega, que faz parte, indubitavelmente, do condicionamento cultural construído pela cultura pop, edificada pela TV e rádios FM. João do Morro faz parte dessa parcela da comunidade. Mas ele (felizmente ou não) não é apenas isso.




João, além de ser a expressão mais fiel do que é chamado de “mundiça” (gíria nordestina, ou, pelo menos, pernambucana, que quer dizer “ralé”, “povão”), é também um verdadeiro cronista da “fuleiragem” da periferia recifense.

Em suas músicas (em geral, pagodes e suingueiras), ele faz um apanhado geral (de forma engraçada, debochada e escrachada) de todos os tipos característicos dos morros, comunidades e favelas da cidade. Nada escapa aos versos ferinos, irreverentes e bem humorados de João do Morro; personagens e situações não faltam às suas crônicas cotidianas: o gigolô (de coroa, de sapatão), as ligações de 3 segundos em celular (de quem é “liso”), o “papa-frango” (outra espécie de gigolô, dessa vez, bancado por um gay), o loló (espécie de entorpecente bem baratinho, bastante popular em Recife), as moças que fogem da chuva pra não verem desmanchadas suas escovas progressivas e outros artifícios utilizados pra manter os cabelos mais comportados, entre outros “causos”.

A música de João do Morro tem a cara e o cheiro do seu povo: um pagode num sábado à tarde, regado a cerveja nem tão gelada, um espetinho (de carne, frango, coração ou frango com bacon), ou um churrasco, com farofa e vinagrete, no pratinho descartável, gente suada, mulheres de shortinhos minúsculos, sambando enlouquecidamente, clima de libido, escrotice e gréia. Os ingredientes certos pra traduzir o que simboliza a sua música.

Pelo fato de ser do morro e fazer uma música que escancara, sem papas na língua, a vida no próprio morro, o seu povo, seus costumes mais arraigados, João utiliza gírias típicas do povão, de quem e pra quem fala diretamente. Expressões como “frango”, “boyzinho”, “nêga boa”, “caô”, “casa de furança”, além de palavras de baixo calão (típicas do vocabulário da “mundiça”), fazem parte da poética de João de Morro. Uma poética que pode parecer chula, sem classe, agressiva, mas que, na realidade, é autêntica, sem recalques e que retrata o cotidiano nu e cru das comunidades, de forma divertidíssima.

Outro fato interessante é que João do Morro, mesmo sendo um representante vivo da chamada “fuleiragem”, desse lado mais escroto da nossa sociedade, um lado que é tido como ignorante, sem instrução (e, de fato, socialmente, o é), mesmo assim, ele não perdeu de vista a forma mais rápida e eficaz de fazer com que seu som pudesse alcançar o maior número de pessoas possível: a internet. João do Morro já gravou dois discos, mas é pela internet que ele consegue, de fato, disseminar seu trabalho. Dia após dia, registros de seus shows são disponibilizados no mundo virtual, seja no
YouTube, no MySpace, ou através de outros meios. Sinal óbvio de que ele não perde tempo e não está pra brincadeira. Ele é muitíssimo consciente e antenado com as benesses que a tecnologia pode propiciar, e as utiliza a seu favor. E foi através da rede que ele conseguiu fazer uma ponte entre os morros, as comunidades mais pobres, sua cultura e o universo “alternativo”, mais “bem provido” (intelectualmente, financeiramente) da nossa cidade. Até mesmo um público que, a princípio, o rejeitaria, tem prestado atenção à sua música. Tanto é que sites especializados em música pop e independente (Recife Rock e Revista O Grito) já escreveram sobre ele.

Dando sinais do quanto é pop, no
MySpace de João do Morro (em cuja descrição de estilo diz “Alternativa/Glamourosa/Experimental”), pode se encontrar seus vários amigos “improváveis”, como, por exemplo, outro fenômeno da música pop, mas de outra vertente: Mallu Magalhães.

É por essas e outras que João do Morro tem conseguido dar o que falar, seja nos seus shows (onde seus discos são vendidos a “5 reau”), nas favelas, nos carros de som que vendem discos piratas, na internet, nas conversas entre o público alternativo. Diferentemente do discurso dos pagodeiros de até então, João do Morro constrói o seu, intencionalmente ou não, em cima de uma visão quase que antropológica, empírica, do seu povo, do seu cotidiano. Sem firulas, direto, engraçado, escroto. Assim como o povo brasileiro.

Pra quem quiser curtir o som de João do Morro, é só ir lá no blog Som Barato e baixar um ensaio, em duas partes, além de um de seus shows, gravado no Espaço Aberto. Inclusive, esse mesmo texto acima também foi publicado lá, na íntegra.


Eis o link: http://sombarato.blogspot.com/2008/06/joo-do-morro.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom o teu texto, Léo.

Já conhecia a música "Chupa que é de uva", mas não tinha atentado à figura por trás da canção.

Parabéns pela sensibilidade, e obrigada pelas boas indicações, sempre

E Chocalhos e Badalos, a quantas anda?

beijos

Kika
CAIPIRINHA APPRECIATION SOCIETY SHOW
(música brasileira além dos clichês)